O destino é cínico Acabei de ver o meu abrigo ser atingido por um relâmpago Pela segunda vez num mês no mesmo sítio Foi difícil (já é um processo mecanizado) Ponho o primeiro alicerce e passo para piloto automático Já esqueci sentimentos tipo amor, ciúme e carinho Não me pareceram muito úteis nesta ilha deserta sozinho Depois dos comprimidos, do álcool e das seringas Percebi que eu sou a minha própria má companhia Estes lápis de cera devem ter algum problema Porque a cidade ainda é cinzenta e ainda não vi borboletas Só cores neutras, a noite soprou a vida da minha paleta Mas lágrimas são incolores, pintar com elas não vale a pena Nunca pensei escavar um túnel numa fuga ao sofrimento Tinha medo de partir uma unha com o movimento Agora olha para mim com roturas nos ligamentos Com sede, sangue nos dedos, sem unhas a escavar no cimento E vou escavar esse túnel quando podia simplesmente Pintar uma porta na parede para nos tirar desta cela Mas quando voltar à cidadela Não quero que ela me chame artista plástico, mas artista de ferro Já não consigo pintar por cima do problema Era uma folha em branco antes destes lápis de cera Respirava policromia, lágrimas são aquarela Disfarçava imperfeições na pele com lápis de cera Já não consigo pintar por cima do problema Sou uma folha cinzenta depois destes lápis de cera Agora a natureza é morta, a minha cidade é deserta Lápis de cera, lápis de cera Uma imagem vale mais que mil palavras? Boa piada! Só que eu sou cego e começo a já não achar graça Então parem de me dizer: abre os olhos para perceber Pelos vistos, tenho um ponto de vista diferente, estás a ver? De olhos fechados, pego nuns lápis de cera gastos Pinto um arco-íris, deito-me à sombra desta árvore Com uma espiga nos lábios, chapéu tombado para a frente Não sei o que seria de mim sem breves momentos como este Tenho mil sonhos guardados, mil vão se manter escondidos Por isso lanço ao oceano todos estes sonhos perdidos Dentro de uma garrafa e com um bilhete de boa sorte Para quem os encontrar e tentar concretizar, desisto Admito, sou só um jardineiro sem amor à terra Rego umas duas vezes e deixo o resto com a primavera Admito, sou só um romântico não assumido Digo umas duas palavras e deixo o resto com o nervosismo Já não consigo pintar por cima do problema Era uma folha em branco antes destes lápis de cera Respirava policromia, lágrimas são aquarela Disfarçava imperfeições na pele com lápis de cera Já não consigo pintar por cima do problema Sou uma folha cinzenta depois destes lápis de cera Agora a natureza é morta, a minha cidade é deserta Lápis de cera, lápis de cera Uma imagem vale mais que mil palavras? Eu trocava mil imagens por uma palavra de confiança da tua parte Nunca quis ver-me abraçado a esta almofada À procura do doce aroma que antes sentia quando acordava Ainda pergunto: como pudeste incendiar tudo? Não era grande e quente, mas construímos aquela casa juntos Soltar insultos é fácil como fazer as malas Difícil é desculpar e resolver problemas com calma Tu não estás impressionada e eu não tenho um propósito? 'Tou montado numa estrela cadente, a tentar caçar um unicórnio Como te atreves a falar em espírito de sacrifício? Eu tinha tanto espírito de sacrifício que sacrifiquei o meu espírito Eu estilhaço a minha vida com estas declarações ridículas Mas vivo em câmara lenta para contemplar as partículas Não sou uma folha em branco, nem cinzenta Eu sou uma tela repleta de rabiscos e padrões sobrepostos a lápis de cera