Meia-noite são ruas de assombração Meia-noite a perua para de vir Meia-noite o boteco fecha o portão Meia-noite quem tem que fazer serão Será que chega vivo no barracão? É na boca do beco que escapa um teco Ou no tiro torto do batalhão? Faz é tempo que a vida ficou feroz Faz é tempo que ninguém levanta a voz Faz é tempo que o medo manda ni nóis Quero ver presidente e governador Meia-noite, andar por aí a sós, professor ♪ Vejo a cara de espanto daquele tio Por aquele cara que se explodiu Só porque lá morreu trinta-e-não-sei-o-quê Trinta-e-não-sei-o-quê nesse fim de chão Vou falar pra você, é mês sim, mês não Não sai no diário, nem comentário Pra gente ver na televisão Gente aqui paga imposto com o suor Gente paga pedágio pro rei do pó E quem cuida da gente é a gente só Ou depois de sentir como que é o terror A cidade também vai olhar por nós, professor? ♪ A pessoa sobrevive na favela Nem o Estado e nem ninguém olha por ela Paga imposto, como qualquer cidadão Qualquer não, porque na justa proporção O bacana paga quase uma esparrela Comparado o ganho dele com o dela Que sai do remédio e do arroz com feijão Mas ela paga e padece Então um dia acontece Filho caçula adoece Começa a maldita saga Porque hospital não tem vaga Com o filho no braço Volta pra comunidade se sentindo o próprio bagaço Um poço de nulidade Então, em pleno abandono No auge do desalento Encontra o dono, o patrono O chefe do movimento Que lhe paga o tratamento Cura a enfermidade E cria, veja só que situação Um elo de absurda gratidão Entre o desabençoado cidadão E o bandido que lhe deu a mão Agora sem querer ser catastrófico Nem fazer apologia ao tráfico Se se desse com qualquer um a crueldade De correr as ruas da cidade Atrás de conseguir atendimento E receber um não da sociedade Aquele que salvou o seu rebento Na hora da maior necessidade Teria o seu agradecimento E, por retribuição, fidelidade Pra quem não vive na periferia Tratado como fosse um porcaria É fácil condenar, dar esculacho Mas pra quem encara essa todo dia Pra maioria aqui do populacho O buraco, meu irmão, é mais embaixo Ou depois de sentir como que é o terror A cidade também vai olhar por nós, professor?